Recursos Didáticos - Socioanálise e trajetória familiar como análise do presente

 

Olás,


Eu sempre pensei em reservar um tempo para escrever sobre uma experiência com ensino que me levou a desenvolver um instrumento para discussão teórica atrelada à consciência sobre a própria trajetória dos indivíduos. No fundo, uma preocupação com a relação entre teoria e prática valorizando a história das(os) alunas(os) e chamando-as(os) a refletir a respeito disso à luz das teorias estudadas ao longo do semestre com a disciplina Sociologia do Direito.


A origem:

A minha relação com a pesquisa genealógica é antiga e coordeno na UFJF-GV o projeto de extensão "Origens e horizontes: genealogia e direitos", que possui um blog que pode ser acessado neste link. O projeto surgiu depois que propus a uma turma, alguns anos atrás, que fizessem a sua árvore genealógica para tentarmos compreender a teoria de Bourdieu tomando exemplos "empáticos", que causassem interesse nas(os) envolvidas(os). 

O resultado foi muito interessante e comecei a pensá-lo em escala, ajudando a pessoas da comunidade a fazerem o mesmo exercício de análise da sua trajetória familiar, não à luz de teóricas(os), mas quanto ao acesso ou limitação do acesso a direitos.



A motivação para falar a respeito:

Decidi fazer isso hoje no momento em que estava corrigindo os trabalhos deste semestre 2023.3. O motivo é claro: sempre que ouço os vídeos gravados pelas(os) discentes fico encantada com a reflexão que elas(es) produzem a partir da oportunidade de olhar para essas informações considerando o ponto de vista teórico e não mais um caso isolado. Também é óbvio que o interesse delas(es) é maior quando observam que não se trata de uma teoria isolada, de um teórico estrangeiro, que não tem qualquer relação com a sua existência ou da realidade que conhece.


Como é feito:

O trabalho consiste em:

- propor a turma para que cada um construa a sua árvore genealógica tendo por meta alcançar informações sobre 06 gerações;

- utilizamos uma plataforma gratuita para acesso e compartilhamento de dados, que é a o family search;

- as(os) discentes escolhem 02 institutos jurídicos que observaram em sua trajetória familiar e escolhem 02 autores(as) com um conceito ao menos para analisar a situação identificada;

- por fim, para otimizar o tempo destinado à disciplina (60 horas aula), peço que gravem um vídeo, de 09 a 11 minutos, explicando conceitos, institutos, teorias e correlacionando com os achados encontrados.

O vídeo auxilia na proteção das(os) discentes, já que muitas histórias contadas causam extremo sofrimento e também em situações desconfortáveis, na medida em que se sentem julgados, quando ousam falar em público. Desse modo, o vídeo gravado apenas para a(o) docente garante uma condição de fala que é acolhida e respeita, garantindo o sigilo e com foco apenas na análise, na consciência e na percepção de como o presente decorre em alguma medida de todos esses fatos que foram garimpados por eles junto a suas famílias.

Nos vídeos elas(es) são extremamente participativos e demonstram que a barreira à participação não é da ordem do interesse pelo assunto, mas de um certo constrangimento quando o debate é coletivo

Portanto, a proposta é simples e pode ser facilmente replicada, o que, de fato, recomendo, devido aos resultados observados nestes anos nos quais tenho implementado a experiência.


Questões problematizadas e ilustradas com o trabalho:

A atividade, por vezes, traz percepções conflitantes que coexistem. Citarei apenas algumas abaixo.

Os conceitos de trabalho, posse e propriedade, são, por exemplo, bastante visados nos trabalhos e analisados considerando-se recortes históricos e da realidade observada.

O conceito de família e sua idealização é uma das questões aqui discutidas a partir de elementos concretos. O sofrimento imprimido nos indivíduos por não se enquadrarem em determinados padrões institucionalizados na sociedade. O próprio fato de que os aplicativos de construção da trajetória familiar determinam a indicação de casais, homens e mulheres apenas. Desse modo, obriga os indivíduos a "escolherem" qual maternidade e qual paternidade citarão em suas respectivas árvores.

Também é um sofrimento o revisitar situações traumáticas que marcaram a trajetória familiar e é muito comum a resistência das(os) discentes no início do semestre quando a atividade é proposta. Isso promove uma desconstrução da instituição no sentido de algo necessariamente benéfico, favorável, necessário. Essa desnaturalização é fundamental para a compreensão dos processos que envolve o convívio social e as instituições que estruturam essas relações sociais.

O capital cultural, as oportunidades, o papel do ensino, o trabalho doméstico, o trabalho remunerado, o casamento, a filiação, as concepções conservadores e a limitação das liberdades individuais, além das desigualdades de gênero e suas consequências são amplamente ilustradas neste trabalho. Turma após turma, o que demonstra claramente a condição estrutural que perpasse esse contexto.

Outra questão é que as(os) alunas(os) revisitam a história do Brasil e a história mundial a partir de relações que lhes interessam diretamente e pelas quais nutrem condições afetivas. Isso faz com que aprendam história pelo reconhecimento de fatos antes tão distantes, presentes em livros desconhecidos, para fatos identificáveis com parentes pelos quais têm alguma empatia. O exemplo clássico diz respeito à escravização de negros na sociedade brasileira.

Ligado ao tema, é importante também ressaltar como o Brasil é um país registral e não se encontra sozinho nessa condição, ao mesmo tempo em que é demasiado caro não apenas ter documentos, registros oficiais, como mantê-los. Além, é claro, da necessidade não apenas de renda, mas de compreensão acerca da importância destes registros para acessar mais facilmente direitos disponíveis, por exemplo, os de cidadania estrangeira. Lógico, que aqui também é importante lembrar como o Estado pode atuar para amenizar ou combater esse tipo de dificuldade. Este é o caso, por exemplo, da política de gratuidade do registro civil para as pessoas carentes.

Também existe um processo de aproximação e de diálogo entre gerações que traz um resultado muito interessante. A busca por dados obriga as(os) discentes a procurarem seus antepassados ou parentes próximos para procurarem não apenas documentos, como também relatos orais. Essa experiência e a valorização das histórias de família, socializadas neste ambiente, é importante para o desenvolvimento de uma reflexão crítica sobre a sociedade.

Relacionando a origem desta proposta com o resultado hoje, creio que seja também um ótimo exercício se aplicado com alunas(os) de ensino fundamental e ensino médio, com o intuito de discutir a cidadania, o acesso a direitos, a condição social da mulher, classes, estamentos, privilégios, preconceitos, entre outros.

Por fim, lembro que vários outros elementos poderiam ser citados e tentarei ir complementando essa postagem ao longo do tempo. Porém, ressalto que talvez a mais importante é demonstrar que toda história importa e que a história de cada aluna(o) tem relação com a história oficial estudada, ilustrando-a ou negando-a ao mostrar uma perspectiva contingencial.


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